As mulheres negras e o feminismo no Brasil

Por Bianca Santana

 

negra-feminismo
Minha intenção aqui é tratar da relação entre gênero e raça no Brasil, que inevitavelmente também é uma questão de classe social. A partir da realidade das mulheres negras, pretendo esboçar um panorama simplificado de divergências do feminismo brasileiro.

O Brasil tem mais de 200 milhões de pessoas, dessas 51% são mulheres. Apesar de termos uma presidenta mulher, que concorre à reeleição disputando com outra mulher, ainda somos subrepresentadas na política brasileira. A Câmara Federal tem menos de 9% de deputadas.
Do total, 50% das brasileiras são negras, o que significa 50 milhões de mulheres negras – 10 vezes a população da Noruega. Embora tenhamos avançado muito nos últimos anos, o Brasil continua sendo um país extremamente desigual e racista. E a história das mulheres negras é também a história da minha vida, com diferenças marcantes o bastante para eu ter chegado até aqui hoje, e muitas não terem tido essa oportunidade.

As mulheres da Uneafro, grupo que recebeu o convite para participar deste encontro, na posição que ocupo agora, não sabem falar inglês. Nem esse inglês que eu arrisco. Elas têm muito a compartilhar sobre o que é ser mulher negra, militante e feminista no Brasil de hoje, mas a falta de oportunidades que as acompanhou vida afora se manifestou mais uma vez e elas precisaram recusar o convite, indicando meu nome.

Eu estudei inglês em uma escola pequena na periferia de São Paulo graças à minha mãe. Ela foi empregada doméstica e pode cursar a universidade na década de 1970 por ter recebido um crédito educativo público. Eu e minha mãe somos parte do pequeno grupo de mulheres negras com acesso ao ensino superior. Ainda hoje, as mulheres negras são 20% da população com acesso à universidade.

Minha avó foi empregada doméstica a vida toda. E a mãe da minha avó deve ter sido escrava. Em 2008, a cada 100 mulheres negras trabalhadoras no Brasil, 22 eram empregadas domésticas. Dez anos antes, eram 48. Até o ano passado as empregadas domésticas não tinham os mesmos direitos trabalhistas que outros profissionais no Brasil. Somente em 2013, jornada de até 44 horas semanais, pagamento de hora extra, adicional noturno e seguro-desemprego foram garantidos, graças à luta das trabalhadoras organizadas.

Minha mãe e minha avó criaram os filhos sozinhas. Meu avô saiu de casa quando minha mãe tinha 2 meses. E meu pai saiu de casa quando eu tinha 2 meses. Mais uma vez, esse não é um fenômeno isolado. Cerca de 35% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres.

E as famílias chefiadas por mulheres negras são as mais pobres. Porque as mulheres negras são as que ganham menos.

Minha mãe, assim como minha avó, nunca mais namorou ou se casou. Diversas pesquisadoras afirmam que a subjetividade das mulheres negras, principalmente no que tange à autoestima, à afetividade e à sexualidade, é muito comprometida pela “branquitude” do imaginário social. Soma-se a isso a experiência do abandono e da violência vivida por muitas mulheres. E está dada a “escolha” por ficar sozinha.

Depois de se separar da minha mãe, meu pai casou de novo. E teve outro filho. Um menino com quem perdi contato com a morte do meu pai, quando eu tinha 11 anos de idade. Como tantos outros jovens negros brasileiros, meu pai morreu jovem, depois de ganhar a vida com o jogo do bicho, prática ilegal no Brasil. Ele era inteligente, ambicioso e inventou um caminho para ganhar dinheiro. E acabou mal, como acontece com a maior parte dos jovens negros. No ano de 2012, morreram proporcionalmente 146,5% mais negros do que brancos no Brasil, em situações como homicídios, acidentes de trânsito ou suicídio, como aconteceu com o meu pai.

Não preciso enfatizar como senti e sinto dor por essa história. E como já foi muito difícil falar sobre isso. Depois de anos de estudo e terapia, decidi procurar aquele irmão. E descobri, no ano passado, que ele também era um jovem inteligente e ambicioso. E que ele estava preso. Das quase 550 mil quase 60% são negras ou negros.

Pensei em procurar esse irmão na cadeia. Mas, além de não ter estrutura emocional para tanto, eu não conseguiria passar por uma revista vexatória. No Brasil, a maior parte das pessoas que vai visitar seus presos sofre abuso. Precisa tirar a roupa toda, agachar e algumas vezes fazer exames clínicos invasivos. Até as crianças.

A situação das mulheres presas é terrível. Nas penitenciárias de São Paulo, o estado mais rico do Brasil, cada presa recebia, no ano passado uma média de meio absorvente por mês. Meio. E cerca de 40% das presas nunca recebiam visitas na cadeia.

Há um genocídio dos jovens negros no Brasil. E nós, mulheres negras, sentimos isso no peito e na pele. A maior parte das mulheres negras vive sozinha, trabalhando muito por baixos salário, cuidando sozinhas das crianças e vendo seus filhos, pais e irmãos serem mortos ou presos.

Eu vivo essa realidade parcialmente. Apesar da dor e das memórias, hoje sou professora universitária, jornalista, estou casada e vivo em um bairro central de classe média. Mas estou muito perto do que chamamos branqueamento. Bem, o meu nome é Bianca! Branca, em italiano ainda. E esse branqueamento se manifesta desde a infância, quando falar sobre cor de pele e ancestralidade não cabia, nem em casa, nem na escola. Se manifesta principalmente na relação com o cabelo crespo.
As mulheres da minha família alisam cabelo desde sempre, assim como a maior parte das mulheres de cabelo crespo que circulam nos centros urbanos. Por não alisar, eu sempre fui convidada a “arrumar” o cabelo.

Soltei o cabelo há menos de um ano. E uso turbantes coloridos, black power… o que parece estranho para a maior parte das pessoas. Muitas vezes me param na rua para perguntar se sou cantora ou artista. “Porque só artista pra andar com o cabelo assim”.
Chamar o cabelocrespo de “ruim” e cabelo livro de “bom” é, como sabemos, uma expressão do nosso racismo e desigualdade racial.

Mulheres brancas são percebidas como frágeis. Mulheres negras, por outro lado, são quase sempre chamadas de fortes. Nossos corpos nus são expostos na televisão antes, durante e depois do carnaval. Nós trabalhamos fora de casa desde sempre. E não temos acesso à justiça. A justiça no Brasil ter uma cor muito específica: ela é branca.

Nem sempre o feminismo trata dessas diferenças. Por isso, movimentos de mulheres negras apontam que diversas correntes do feminismo são brancas, eurocêntricas, acadêmicas, ricas e até racistas.

Outra divergência evidente no campo do feminismo diz respeito à autonomia sobre os corpos das mulheres, interpretadas por perspectivas mais liberais, como uma resignificação de termos pejorativos, como vadia, por exemplo, e a exposição de corpos nus como instrumento de luta.

Para muitos movimentos populares e de mulheres negras não há resignificação possível de termos pelos quais as mulheres têm sido oprimidas há tanto tempo, principalmente as pobres e pretas. Os corpos de mulheres negras, disseminados pela mídia como objetos sexuais, são expostos sem pudores.

Autonomia sobre o corpo como direito a ser vadia e explorar a nudez é um ponto de conflito no feminismo brasileiro.

Já o direito ao aborto, em um país onde abortar é crime, parece unificar o movimento. As mulheres que têm dinheiro, abortam no Brasil com assistência médica em clínicas privadas. Enquanto as mulheres pobres acabam recorrendo a práticas clandestinas e inseguras para abortar. Muitas morrem nesse tentativa, outras são negligenciadas quando chegam sangrando ao hospital. E o aborto é ainda hoje uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil.

A transexualidade é outro ponto de conflito. Há movimentos que defendem a inclusão de travestis e mulheres trans na pauta feminista, por perceberem a questão de gênero como uma questão de identidade. Enquanto outros movimentos, defendem a submissão de mulheres como a principal pauta do feminismo, compreendendo gênero como as relações histórico-sociais construídas entre homens e mulheres.

Para encerrar, a regulamentação da prostituição é outro ponto de divergência significativa. Há grupos que defendem a regulamentação para garantir direitos às prostitutas, já que cada uma escolhe o que fazer com o próprio corpo. E grupos que problematizam a prostituição em um contexto de vulnerabilidade, não como uma escolha da mulher; a regulamentação seria, então, a opressão legal e institucionalizada.

A Casa de Lua, coletivo feminista de que faço parte, tem apostado na diversidade e no diálogo como valores necessários à luta feminista. E abraçamos nossas divergências, até as do próprio grupo, como motivadores para nosso fortalecimento
individual e coletivo. Acreditamos nas revoluções internas, construídas no coletivo, como possibilidade de transformação social. E a cada atividade que promovemos no nosso espaço fazemos um breve ritual, quando, em círculo, dizemos três vezes: “coloco as minhas mãos sobre as suas para que possamos fazer juntas aquilo que eu não sei fazer sozinha”. Muito obrigada por essa possibilidade de encontro. Eu realmente acredito que podemos provocar mudanças unindo aqui também nossas
mãos. Obrigada.


Referências bibliográficas:
BAIRROS, Luiza. Lembrando Lelia Gonzalez. Em WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa e WHITE, Evelyn C.O livro da saúde das mulheres negras – nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro, Criola/Pallas, 2000. Disponível em:http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n23_p347.pdf
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estud. av. [online]. 2003, vol.17, n.49 [cited 2014-08-31], pp. 117-133.
MARCONDES, Mariana. PINHEIRO, Luana. QUEIROZ, Cristin. QUERINO, Ana Carolina, VALVERDE, Danielle Valverde (org). Dossiê Mulheres Negras retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília, 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2097


In Geledés Instituto da Mulher Negra

(*) Bianca Santana, do Coletivo Feminista Não Me Kahlo. Texto preparado para a Fett Conference, apresentado em Oslo, Noruega, no dia 5 de setembro de 2014.

 

QUANTO SOFRIMENTO DE MULHERES SERÁ NECESSÁRIO PARA QUE SE COMBATA A VIOLÊNCIA MACHISTA NA USP?

machismo na usp

por Letícia Pinho (*)

Nos últimos dias muita gente recebeu assustada a notícia dos casos de violência sexual na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, a FMUSP. A repercussão veio à tona depois da publicação da matéria no site ponte.org “Violência sexual, castigos físicos e preconceito na Faculdade de Medicina” (que pode ser acessada no link:http://ponte.org/violencia-sexual-castigos-fisicos-e-preconceito-na-faculdade-de-medicina-da-usp/). São relatos muito tristes e revoltantes que mostram que a USP não é um mundo à parte da realidade da violência que atinge diariamente milhares de mulheres no nosso país.

No Brasil a violência contra as mulheres é uma verdadeira epidemia: a cada 10 segundos uma mulher é estuprada, a cada 2 minutos cinco mulheres são espancada e a cada 2 horas uma mulher é assassinada. O Brasil é o 7º país onde mais morrem mulheres vítimas da violência machista. São dados terríveis que traduzem em estatísticas um verdadeiro inferno cotidiano vivenciado por todas nós. Todo esse cenário também se reflete dentro dos muros da Universidade. São muitos os casos de agressões físicas, perseguição, assédios e estupros. A falta de creches para as estudantes e trabalhadoras que são mães, a falta de bolsas de permanência e de vagas na moradia, a terceirização que retira direitos e precariza o trabalho principalmente de mulheres negras também são formas de violência enfrentadas pelas mulheres na universidade.

E diante de tudo isso, quando somos vítimas, nos deparamos com uma situação de total desamparo e abandono. O papel que a reitoria da Universidade e o Governo do Estado de São Paulo estão cumprindo é inaceitável pois o que vemos é um absoluto silêncio, fechando os olhos para a realidade e não apresentando nenhuma proposta para combater a violência contra as mulheres. A atitude da direção da faculdade de medicina é absurda pois além de não ter feito absolutamente nada para apurar os casos e punir os agressores, não deu apoio para as vítimas e ainda por cima tentou silenciar a situação para não “manchar o nome” da instituição. No dia 11 de novembro foi realizada uma audiência pública para debater os casos ocorridos na faculdade de medicina e o Deputado Adriano Diogo, do PT de SP, declarou ter sido pressionado pelo diretor da faculdade de medicina, o professor José Otávio Auler, para não realizar a audiência. O nome e a tradição da FMUSP foi colocado em primeiro plano e a defesa das mulheres foi descartada. E nessa quarta feira dia 12/11 o médico Paulo Saldiva, que presidia a comissão que apura os casos de violência sexual, pediu afastamento do cargo por estar cansado de ter que “engolir sapos” e que na faculdade não há o empenho necessário na investigação dos casos. Somente após a repercussão das denúncias é que a faculdade anunciou que vai criar um centro de defesa em direitos humanos.

Na USP não existem canais para denúncia dos casos e tampouco punição dos agressores. Por não existir uma ouvidoria para esse tipo de violência na universidade, não se tem ideia de quantos casos como esses acontecem. A presença da polícia militar no campus, mesmo depois de muita resistência do movimento estudantil na universidade para que o acordo da USP com a PM não fosse assinado, não impediu com que houvessem esses casos. A presença da polícia militar no campus não garante a segurança, não é solução para a violência contra as mulheres. A guarda Universitária por outro lado ano após ano está sendo sucateada e o contingente feminino é muito reduzido. Falta gente, falta treinamento e investimento. Também não existe nenhum centro de referência no combate à violência contra as mulheres para acolhimento das vítimas e orientação médica, jurídica e psicológica. É preciso dar um basta a essa situação revoltante!

A força que as estudantes da faculdade de medicina tiveram para denunciar esses casos nos inspira e nos fortalece. E é importante que se diga que essas estudantes não estão sós. Ao lado delas somos milhares. Vamos transformar toda essa dor em luta para mudar essa realidade e mudar a universidade para que nenhuma mulher passe por todo esse sofrimento. Viver sem violência é um direito das mulheres.

Queremos medidas efetivas para combater a violência contra as mulheres na USP! No II Encontro de Mulheres Estudantes da USP, realizado nos dias 17,18 e 19 de outubro, estudantes de vários cursos e campi debateram a realidade da violência na universidade e que medidas poderiam ser implementadas para mudar esse cenário. Nós da ANEL e do Movimento Mulheres em Luta participamos desse importante espaço de fortalecimento do movimento feminista e estudantil na universidade e continuaremos com toda a nossa força participando da mobilização para mudar essa realidade. Com a unidade do movimento feminista com o movimento estudantil e de trabalhadores é possível com muita luta termos vitórias!

Nesse sentido exigimos:

* Mais iluminação nos campi.
* Criação de uma ouvidoria que sistematize e encaminhe os casos de violência contra a mulher na USP.
* Abertura de inquéritos administrativos que levem à responsabilização e punição dos agressores.
* Criação do Centro de Referência de combate à violência contra a mulher com atendimento multiprofissional para acolhimento das vítimas.
* Fim do convênio da USP com a polícia militar.
* Aumento do efetivo feminino da Guarda Universitária, com preparação para casos de violência contra a mulher.
* Campanhas institucionais da USP sobre violência contra a mulher na universidade, a começar pelos trotes na calourada.

(*) Diretora do DCE-USP, Executiva Nacional da ANEL, Executiva Nacional do MML.