
Em entrevista exclusiva, o ator fala sobre a falta de representatividade da população no Legislativo, os recentes protestos contra o governo, o conservadorismo da imprensa brasileira, as contradições do capitalismo e o humor como ferramenta de transformação social; confira
Por Maíra Streit
Gregorio Duvivier é ator, escritor, roteirista, empresário, faz cinema, TV e teatro, mantém uma coluna na Folha de S. Paulo e há anos conquistou sucesso com o grupo Porta dos Fundos, que ajudou a criar. É apontado como um dos grandes talentos de sua geração, mas tem – mesmo que involuntariamente – colecionado polêmicas desde que passou a falar sobre sua visão diante do cenário político do país.
Nessa entrevista, ele comenta a falta de representatividade da população no Legislativo, os recentes protestos contra o governo, o conservadorismo da imprensa brasileira, as contradições do capitalismo e o humor como ferramenta de transformação social. “O pior perigo é infantilizar o público, torná-lo bobo, vazio, ingênuo. Para mim, o maior atrativo e a força de uma piada residem na irreverência”, afirma.
Confira abaixo.
Fórum – Gregorio, você faz parte de uma geração nascida nos anos 1980, que foi uma década importante para o país do ponto de visto sociopolítico, com o fim da ditadura militar, a redemocratização, Diretas Já, uma nova Constituição. Como você avalia o momento em que vivemos hoje?
Gregorio Duvivier – Temos uma democracia jovem, que nasceu junto com a gente. Nascemos com um presidente que nem tinha sido eleito diretamente. Acho que isso é muito sintomático. Temos uma democracia muito verde. Então, as pessoas, sobretudo as mais velhas, não estão acostumadas a discutir. A geração dos meus pais está muito traumatizada com a política. Meus pais acham política um nojo, apesar de serem de esquerda. E com razão.
Quando eles eram jovens, era Arena ou MDB. Não tinha muita alternativa. Essa é a primeira geração que viu que consegue eleger representantes e consegue acreditar que política pode fazer a diferença. Ao mesmo tempo, a gente precisa entender que a política é diferente do futebol. Às vezes a gente tenta transportar a mesma rivalidade. No futebol, você é aquilo para o resto da vida e vai defender o seu time para sempre. Na política, não existe uma verdade absoluta.
A democracia ainda é frágil. Nunca o Brasil ficou tanto tempo quanto agora, nunca teve mais de 30 anos de democracia. Nossa história não é de paz, é de extrema violência. Qualquer levante popular era reprimido com muita violência. Não somos um povo pacífico, mas um povo apassivado.

“Temos uma democracia muito verde. Então, as pessoas, sobretudo as mais velhas, não estão acostumadas a discutir (Foto: Maíra Streit)”
Fórum – Isso explica algumas reações de intolerância que temos visto? Você mesmo foi vítima de constrangimentos por colocar suas opiniões políticas. Ainda há muita imaturidade nesse aspecto?
Duvivier – A gente é muito imaturo, não sabe lidar com as discordâncias. Não sabe ler e discernir opiniões. A mídia no Brasil tem uma ligação muito forte com o poder, sobretudo a impressa. Algumas têm ligação com o governo, outras com a oposição. Parece que não interessa problematizar a questão. Falam da regulamentação da mídia e isso vira “censura”. É esse conflito de interesses. A relação público-privada no Brasil é o nosso câncer. Como o privado financia e manda no público! E, no caso dos jornais, é o público financiando o privado.

“O Congresso Nacional reflete muito mais o interesse privado do que o público. As empresas elegem os seus representantes (Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados)”
Fórum – Essa questão de o privado financiar o público também lembra muito a formação do nosso Congresso.
Duvivier – O Congresso Nacional reflete muito mais o interesse privado do que o público. As empresas elegem os seus representantes. Empresa não faz doação, faz investimento. E tem retorno, senão elas não iriam continuar. O Congresso funciona para quem paga. É muito louco que isso seja permitido. Tem claramente o nome de cada deputado que votou pelo financiamento privado [de campanhas eleitorais]. Você vê quem está interessado em perpetuar o poder.
As pessoas não estão interessadas. É uma fonte segura, oficial, está lá o nome daqueles que votaram, com uma manobra totalmente espertalhona do Eduardo Cunha. A gente tem essa dificuldade de saber contra quem está lutando. É importante relativizar e entender que as opiniões do jornal são muitas vezes incentivadas por seus investidores.
Fórum – A impressão que dá é que a população tem ido mais às ruas, mas com uma pauta ainda muito difusa. Você acha que, mais do que promover protestos esporádicos, é importante que os cidadãos se preocupem em acompanhar a política, as discussões do Congresso e incluir essas questões no seu cotidiano?
Duvivier – Exatamente! Muita gente foi às ruas de São Paulo contra a terceirização e contra o PT, mas o PT é contra a terceirização. E só você ver que a pessoa contra quem você está lutando está ao seu lado. O PT é contra o financiamento privado. É você ir às ruas pelas razões certas. Sou crítico ao PT, mas acho que temos que bater pela esquerda. E os direitos LGBT? E os direitos indígenas? E o meio ambiente? Bater por esse lado. É muito mais importante a gente bater do lado certo, até porque é importante lembrar que o PT e a Dilma são oposição, não têm maioria no Congresso. Temos uma presidenta que é oposição dentro do próprio governo.
Fórum – Você é bastante procurado para falar sobre política. Como foi se transformar no cara que a direita ama odiar (em especial, os colunistas da Veja)?
Duvivier – (Risos) A primeira palavra que eu li na minha vida foi “Veja” – nunca falei isso. A revista tinha uma importância muito grande e, por um tempo, achei que fosse investigativa, como todo jornalismo deve ser. Eu achava que a Veja era, até começar a ligar os pontos e ver que todos os colunistas falam a mesma coisa, todos escrevem a mesma coluna. Isso para mim é uma vantagem da Folha, que tem o [Luiz Felipe] Pondé, o [Vladimir] Safatle, o Reinaldo Azevedo, o [Guilherme] Boulos. A pessoa tem o direito de achar o que quiser. Mas lá são travestidos de articulistas, e até mesmo de cronistas, quando na verdade são replicadores.
Fórum – E por que eles parecem ter uma fixação pela sua figura?
Duvivier – Consciência social incomoda, e vem esse rótulo de “esquerda caviar”. Incomoda muito a eles que uma pessoa possa ter um conceito social. Se o vegetariano incomoda o carnívoro, incomoda porque o faz pensar, ele se sente culpado e ataca. Da mesma maneira, a pessoa que tem consciência social exacerba a culpa daquele que não tem.
Como a esquerda teoricamente está no poder, eles se acham oposição, mas o poder no Brasil nunca trocou, de fato, de mãos. Eles não são oposição, são governistas no sentido de que são a favor da perpetuação, não querem a mudança, por isso são reacionários. Eles são pela continuação do que sempre foi. O Brasil nunca alternou o poder de fato.
Tivemos uma tímida tentativa com o Lula e a distribuição de renda, mas não podemos chamar de alternância de poder, com o PMDB mandando. É bom a gente lembrar que o PT, que é tão atacado, não é quem está mandando. Eduardo Cunha tira e põe qualquer ministro, aprova e desaprova qualquer emenda. É importante a gente lembrar disso.

“O problema dos capitalistas é que as mesmas pessoas que prezam pela independência do mercado não prezam pela independência do ser humano”
Fórum – E sobre a onda conservadora que tem tomado o país… O que você pensa quando se dá conta de que, em pleno século XXI, a gente ainda discute se o conceito de família pode ir além de homem, mulher e filhos? Tem, inclusive, uma enquete da Câmara sobre isso.
Duvivier – Essa simples pergunta [proposta pela enquete] é criminosa. O fato de estar sendo feita já é criminoso. É a mesma coisa de perguntar se os índios são seres humanos. Já está equivocado só de fazê-la. E é feita de uma maneira totalmente indutiva. Você acha que todo ser humano tem o direito de ter uma família, independentemente da orientação sexual? Tinha que ser assim.
É triste, além do resultado, saber que isso está em pauta no Brasil. Isso para qualquer país minimamente civilizado. Parece uma discussão da escravidão, para saber se os negros tinham alma. É a mesma coisa, o mesmo nível. O brasileiro ainda está no século XVII, é muito triste que a direita seja tão conservadora.
O problema dos capitalistas é que as mesmas pessoas que prezam pela independência do mercado não prezam pela independência do ser humano. O mercado tem que ser livre, mas o ser humano tem que ser regulado. Regulamentação para o ser humano, mas liberdade para as empreiteiras. O mínimo de coerência tem que ser necessária. O Congresso está cheio de fiscais de cu.
Liberdade para os bancos, as empreiteiras e o poder de modo geral, mas a mulher e o transexual, esses eu quero regulamentar tudo o que fazem na vida privada. Aí entra o aborto, que é uma questão de saúde pública e da mulher, está longe de ser uma discussão ética ou religiosa. Mas ainda baseiam as argumentações no aspecto religioso.
Fórum – Falando um pouco sobre isso, o humor pode ser uma ferramenta importante de transgressão, mas às vezes acaba reforçando estereótipos. O Porta dos Fundos vem na contramão. Há quem diga que o mundo está ficando mais chato por causa do “politicamente correto”. Mas talvez esteja ficando chato para os machistas, racistas e homofóbicos que sempre puderam agir sem serem incomodados, né?
Duvivier – Eu nunca vi um negro dizendo que tem saudade da época que faziam piadas racistas. Ou um homossexual. Em geral, quem tem saudade é aquele que fazia as piadas e não aqueles que sofriam. O humor pode ser usado para tudo. Pode ser para libertar ou para oprimir. É como a pólvora, que pode servir para uma chacina ou para fogos de artifício. Você pode matar ou pode salvar gente.
O que me incomoda é quando o humorista diz que é só uma piada. É o meu ganha-pão, é o que dá sentido à minha vida. Não é só uma piada. O médico não diz “É só uma cirurgia; se morrer, não tem problema”. Tem que levar mais a sério. Os humoristas que eu mais admiro levam muito a sério. Como o Chaplin, que fez um filme sobre Hitler quando as pessoas ainda não entendiam direito aquele sujeito.
Ele foi um dos responsáveis pela adesão dos Aliados contra o Nazismo. Ele mostrou o ridículo do Nazismo quando ninguém estava vendo. É menos engraçado por isso? Não, é muito mais. Agora, as charges antissemitas daquela época, ninguém lembra delas. O humor não é sempre libertário, não é. Assim como tem hoje o humor homofóbico e racista. Ele pode ser uma ferramenta de opressão, mas ele é muito poderoso quando é usado como ferramenta de libertação.
Temos O Pasquim, que batia na ditadura, em uma tradição de humor político. Foi muito representativo, um humor que está à frente de muitas coisas que fazemos até hoje e eles faziam em plena ditadura, foi muito ousado. É a prova de que o humor não perde a graça quando ele é consciente. O humor não é necessariamente ingênuo ou ignorante. Diziam que o que faz sucesso na internet é o tosco, diziam isso quando começamos no Porta dos Fundos. E a gente acreditava que não. O público da internet não é mais burro que o da televisão, muito pelo contrário.
Temos a TV Pirata, O Pasquim, Chico Anysio, Jô Soares. A gente tem uma tradição de humor responsável, inteligente, crítico. É importante a gente resgatar essa função para o humor e mostrar que é viável. O pior perigo é infantilizar o público, torná-lo bobo, vazio, ingênuo. Para mim, o maior atrativo e a força de uma piada residem na irreverência dela. Humor não é chutar o mendigo, é passar a mão na bunda do guarda. Aí é engraçado. O combustível, para mim, é esse. É o risco.

Sobre Chaplin: “Ele mostrou o ridículo do Nazismo quando ninguém estava vendo. É menos engraçado por isso? Não, é muito mais”