por Ormindo Pires Filho

Talis Andrade mais uma vez brinda a Literatura Pernambucana com um livro de poesias. “Cantigas para um Ícone Dourado” é, sem dúvida, uma manifestação das vivências íntimas do autor. Quando examinamos detidamente o tipo de composição que o poeta nos oferece no decorrer do seu pequeno volume constatamos que três temas funda-mentais parecem ocupar de preferência a atenção do autor: o AMOR, a MORTE e a INJUSTIÇA.
Rejeitando conscientemente o lirismo vazio, Talis Andrade consagra seu esforço a estes temas de grande densidade e de inesgotável riqueza.
Analisemos algumas das poesias. Primeiro as que falam do amor. O amor, pelo menos aquele que parece merecer a atenção do poeta, não é algo realizado, satisfatório, completo. Trata-se, antes, de uma possibilidade, de uma hipótese, de uma conjectura. O próprio amor carnal, epidérmico, não parece ter para o poeta uma importância capital e decisiva. Como o amor sentimento ele se apresenta, ou pelo menos nos dá a impressão, de algo inconcluso, inacabado, quase frustrante. Vejamos se os exemplos corroboram as afirmações:
CANTATA DO AMOR À PRIMEIRA VISTA: “Bem-te-vi, descobri:/ era amor antigo,/ pois logo senti/ o gosto de saudade/ de tudo que/ ainda não foi”.
POEMA DO NAVEGAR: “No suave ritmo/ das doces águas/ mar a fora/ noite e dia/ dia e noite/ navegar navegar/ o teu corpo/ cheio de mormaço/ o teu corpo/ cheio de luar/ Navegar navegar/ sobre um macio/ leito de sargaços/ até ancorarmos/ num porto seguro/ Só então descansarei/ velhos sonhos marinheiros./
POEMA DO LOUCO AMOR: “Fazíamos o louco amor/ como condenados à morte/ a que tudo torna permitido/ no suspense voraz/ dos segundos a finarem/ na última rodada/ das longas facas afiadas. Fazíamos o louco amor/ sob a tensão brutal/ do profetizado apocalipse/ à beira do quarto do motel./ Daí porque tantas fogueiras, / daí porque tantos relâmpagos”.
Examinemos, agora, o tema da morte. Tivemos a curiosidade de fazer uma estatística sobre o assunto e causou-nos admiração o número de poemas dedicados ao tema da morte ou que tratam acidentalmente da mesma: dos vinte e oito poemas que compõem o livro quatorze (exatamente a metade) referem-se explicitamente à morte. Seria o nosso poeta um tanatófilo, mesmo inconscientemente? Ou sua predileção pelo tema tem raízes mais profundas, de natureza psicológica ou transpsicológica? Ou seria apenas a utilização de um tema que, por sua própria natureza é prenhe de poeticidade? Que todos nós temos uma inevitável tendência para a morte parece ser um dos dados incontestável da natureza humana. Aos que têm medo de admitir tal realidade, ou se esforçam para esquecê-la e sufocá-la numa avalanche de prazeres ou de atividades, a Igreja Católica aproveita o período pós carnavalesco para dirigir a todos a recomendação solene: memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris, que em tradução livre significa: Lembra-te homem, que és pó, e que te encaminhas irremediavelmente para o pó.
Deixando, pois, de lado, possíveis interpretações de natureza psicológica, existencialistas ou patológicas, todas igualmente viáveis, fixemo-nos numa opinião: a preferência de TALIS ANDRADE pelo tema da morte (que já foi detectada no seu livro anterior) é motivada pela extrema riqueza de que o mesmo se reveste. Vejamos as amostras:
DA RAZÃO DA MORTE NÃO TER DATA: “Não sem razão se vive/ inconsciente da morte/ que se aproxima./ Da imprevisibilidade/ do instante final/ dependem os dias/ escorrerem lenta e tranqüilamente./ Para nenhum lugar se vai/ comendo/ correndo/ engolindo às pressas/ com as mãos no estopim./ Não há porque se consumir/ voando veloz/ para o cego fim”.
Em RONDA DA SEGUNDA-FEIRA encontramos uma atitude hedonista, sibarita, quase cínica, com relação à vida e à morte: “A vida, amiga,/ só se tem uma,/ vamos gozá-la/ desvairadamente./ O que não se pode/ é ficar na cama,/ vestido o pijama/ do barato pano/ da vida comum/ – mortuária medida/ de um quarto/ sem surpresas,/ tal uma tumba/ sem inscrição/ de anônimo soldado/ do ramerrão./ Será que os mortos,/ os pobres mortos/ do frio morgue/ têm inveja/ dos mausoléus solenes/ feitos de mármores/ e belos anjinhos/ apelidados de kitsch ?”
Em EU TIVE UM FILHO o tema da morte assume o aspecto terrorífico-fantástico e nos faz recordar aquele poema de Manuel Bandeira sobre o mesmo assunto: “não tive um filho meu/ mas trago dentro do peito/ meu filho que não nasceu…”: “Eu tive um filho,/ flor estrangulada/ e jogada no esgoto/ de asséptico hospital./ Um filho, irmão/ de tantos outros/ amaldiçoados e renegados/ pelas limpas mãos do medo./ Talvez uma noite/ ele se transforme/ em pássaro cego,/ estrela candente./ Talvez uma noite/ venha chorar/ à minha janela”.
É, porém, em dois poemas de natureza religiosa, que o tema da morte adquiri em TALIS ANDRADE mais profunda densidade. Refiro-me ao poema O SANTO ESQUIFE DE VELUDO VERMELHO e ao POEMA DA CRUCIFICAÇÃO. Vejamos o primeiro:
“O vermelho manto/ do Senhor Morto/ destaca-lhe o branco/ do branco gesso/ (ou vem de su’alma/ esta triste cor?)/ As velhas mulheres,/ num compacto luto,/ trazem mais que o preto/ das grossas vestes./ Exibem as feridas/ das seculares dores:/ as doenças incuráveis,/ os maridos ausentes,/ os filhos desempregados,/ as filhas envelhecendo/ solteiras e estéreis./…O denso clima de morte/ já não comove o morto,/ insondável no caixão/ todo forrado de veludo./ Ele já não escuta/ as antigas lamúrias/ das árvores ressequidas,/ entorpecido que é/ pelo cheiro acre-doce/ de cravos, incenso/ e velas acesas”.
Este poema é, por sua própria natureza, ICONOCLASTA. Não estamos querendo fazer trocadilhos com o título do livro que ora comentamos, mas todo o poema é uma crítica velada à devoção supersticiosa que se dedica às imagens dos santos e que os deixa insensíveis e indiferentes, sufocados, como estão, pelo cheiro de flores, de velas e de incenso.
Já em POEMA DA CRUCIFICAÇÃO encontramos um poema-prece, em que o poeta comovidamente lamenta todo o inútil esforço do Salvador:
“Só agora entendo, Senhor,/ a imensa e eterna solidão,/ de quem está preso/ à árvore da desolação./ Só agora entendo/ o terror dos pregos/ doendo nos teus pés/ de andarilho da liberdade/ o terror dos pregos/ lancinando a carne./ Só agora entendo/ a imensa e eterna humilhação/ da nudez despojada,/ dos espinhos ferindo/ a tua fronte/ que não faz sete dias/ quiseram coroar./ Só agora entendo/ o imenso e eterno desespero/ dos olhos contemplando/ os sonhos que as mãos dilaceradas/ procuraram semear./ Só agora entendo/ a imensa e eterna desilusão/ dos olhos buscando os lugares/ onde a palavra um dia foi ouvida,/ onde tua palavra amiga/ foi consolo dos aflitos./ Ó Senhor, teus olhos infinitos/ percorrem os caminhos/ que teus pés marcaram com sangue./ Os olhos buscam a cidade longe,/ que não faz uma semana/ te recebeu em festa/ -a mesma cidade/ em cujo chão/ até para morrer/ hoje te julgam indigno/ E fora dos muros de tua cidade/ todos te abandonaram,/ indiferentes ao teu coração/ latejante de paixão”.
A contestação social é também tema do livro de TALIS ANDRADE. Há sobretudo três poemas aos quais gostaria de me referir.
AD PETENDAM PLUVIAM: “Frágeis as alianças/ do arco-íris e da Santa Arca/ para quem não tem/ os exércitos de Davi e Salomão./ Todo pacto sempre mantém o mando/ do mais forte sobre o mais fraco,/ o poder dos raios nas mãos de um só,/ o poder da voz de trovão na boca de um só,/ Não adiantam as procissões rogatórias/ nem derramar o sangue dos justos em holocausto./ Quem tem a água, só dará a chuva que lhe sobre./ E tampouco há porque contrariar os santos,/ que deles sempre serão os altares”./
As duas estrofes finais do poema O CRUZADO são claramente contestatórias:
“Não importa como/ o paraíso se chame,/ nem tampouco onde fica./ Carece que te armes/ da mesma fé de um cruzado/ a caminho de Jerusalém./ Não importa que/ a sede rache a boca,/ a fome doa/ no estômago/ a poeira dos desertos/ cegue os olhos/ e feche os ouvidos./ É suficiente que morras/ pensando que descansas/ na Terra Santa”.
Porém é no poema RETRATO DE SIBONEI que a crítica social de TALIS ANDRADE torna-se mais virulenta e contundente:
“Determinaram tudo seria mais fácil/ se em lugar de um nome/ Sibonei tivesse um número./ A prática se mostrou bastante útil/ nos campos de Treblinka e Dachau./ E Sibonei foi marcada/ como o ferro marca o gado./ Um único número serve/ para todos os documentos:/ certidão de nascimento,/ carteira de motorista,/ identidade e CPF,/ PIS, PUTSCH e PUFT./ Um único número economiza papel/ e facilita a burocracia/ E, importante para Sibonei,/ evita as inevitáveis confusões/ das homônimas que existem por aí./ É fácil localizá-la entre/ as demais jovens da boiada./ Nem precisa justificar que não é/ a que tem cobrança em cartório,/ nem a que foi presa/ por falta de decoro/ ou por não estar conforme/ ao que é conforme./ Basta pedir ao computador/ que ele dirá tudo que sabe,/ inclusive os dias férteis/ pela temperatura do sexo./ A polícia tudo sabe/ com um simples apertar/ da tecla do computador./ A polícia tudo sabe,/ basta perguntar pela jovem 04578./ A polícia sabe tanto,/ que a imagem de Sibonei/ refletida no espelho do quarto/ não confere/ com o boneco cadastrado…… A polícia sabe mais de Sibonei/ do que o jovem que a criou,/ como se tivesse segurado/ a mão firme e terna que a desenhou./ A polícia sabe mais de Sibonei/ do que o jovem que tantas vezes/ pelo corpo de Sibonei ao útero retornou”.
Fiquemos por aqui. A amostra apresentada da poesia de TALIS ANDRADE foi suficiente, ao que supomos, para dar uma visão do valor do poeta. Não foi intenção nossa oferecer um resumo completo da obra. Muitos aspectos relevantes foram deixados de lado pelo simples fato de não pretendermos (nem podermos) esgotá-la. Fica, portanto, a sugestão aos leitores: que eles garimpem e encontrarão muitas outras preciosidades que a miopia do crítico não conseguiu descobrir.
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In Ensaios e Críticas Literárias. Editora Universitária, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994