O CARPINTEIRO

 

Como reconhecer
o Filho do Homem
se em Jerusalém
era considerado
um curandeiro

Em Nazaré
não realizou
nenhum  feito
que justificasse
a fama de milagreiro

Os conterrâneos
indagaram
– Não é este o carpinteiro
filho de Maria
Não vivem aqui
irmãs e irmãos

Talis Andrade, O Judeu Errante, livro inédito

ENCOSTO

Estranho poder
me toma o corpo
Tudo acontece
como se me
transformasse
em uma outra pessoa

Na carne que rasteja
na carne que lateja
o meu corpo age
como que possuído
por indefinida
invisível força

Estranho poder
me toma o corpo
doendo em mim
como um encosto
maligno e ruim

Dor ferida
camuflada
de vidas passadas

Errática
dor referida
atípica
que fustiga

Dor cansada
antiga
que nunca termina

 

 

 


Talis Andrade in Selos do Apocalipse
Ivan Maurício, desenho

A MISSÃO DO DIVINO CAUDILHO

– Vou treinar meu soldados
– Te entrego cem mil rebeldes
para executar
Um exército
de comunistas
de anarquistas
de republicanos
heréticos

– Vou testar minhas armas
Minha legião Condor
meus aviões
meus tanques
minhas bombas incendiárias
e de fragmentação
– Ofereço meus reinos de Portugal
Castela e Aragão
Ofereço a Galiza
a Catalunha
e Madri
Quero que derrube
o Velho Carvalho
de Guernica
e as feras
que ele oferece sombra

– Preciso conhecer as técnicas de interrogatório
da Santa Inquisição
– Tenho mais de 180 campos
de concentração
Dois em Sevilha
Dois em Alicante
Dois em Barcelona
Dois na Grã Canária
Tenho mais de 180
campos de concentração
O campo de Castuera
o campo de Miranda de Ebro
o campo da península de Llevant
Tenho mais de 180
campos de concentração
Ofereço o Betanzos
Ofereço a Guarda da Pasaxe Camposancos
Ofereço o Hostal de San Marcos de León
Ofereço o Mosteiro de Corbán
Tenho mais de 180
campos de concentração

Tudo que Hitler pedia
Franco oferecia
Tudo que Mussolini pedia
Franco oferecia
Pela terrena missão
de ser “caudilho
pela graça de deus”
O diabo sabe que deus

 

FEIRA DOS MILAGRES

por Talis Andrade

Maldito bendito corpo
contido em uma cela
estendido em uma cama
embalsamado
em uma redoma de vidro

Contido medido corpo
de atormentado asceta
temeroso do mundo
dos pecados imundos
da indomada carne

Santificado corpo
espostejado corpo
exibido nos açougues
para ser vendido
como lembrança

Santo corpo de Santa
Isabel da Hungria
depois de morto
arrancaram as unhas
cortaram os cabelos
os bicos dos seios

Corpo lavado
rezado e velado
de São Tomás de Aquino
a cabeça decapitada
o corpo esburgado
os ossos polidos
vendidos a varejo
para que as ricas igrejas
príncipes e reis
pagassem o preço
exorbitante preço
por tão raras
caras relíquias

Corpo cozinhado
no vinho no vinagre
e perfumada água
corpo cozinhado
para o ágape

Maldito corpo
bendito corpo
para ser comido
no banquete
das Santidades

REBIS

por Talis Andrade

1

Caminho curvado
como um condenado
como se fosse
proibido viver
o milagre da vida
em sua plenitude

como se apenas
fosse permitido
um escasso amor
um escasso sexo
como se estivesse
obrigado a andejar
apenas metade
de um caminho

Caminho curvado
como um condenado
o coração vazio
o vazio de me sentir
incompleto
como se faltasse
um lado do corpo

Caminho curvado
eu e uma societária
dor fantasma
dor descontinuada
alucinatória percepção
de uma parte amputada
como punição divina

2

Homem ou fêmea
o que fazer do corpo
quando se sente o corpo
como um peso morto

Homem ou fêmea
daimon demônio
o oposto posto
como continuação
do contrário

o que fazer do corpo
que se torce retorce
nos estertores da morte
os tremores idênticos
aos do orgasmo

Homem ou fêmea
o que fazer do corpo
quando me sinto
dividido em dois

um lado vivo
um lado morto

3

O que fazer do corpo
quando se tem
uma parte doente

sofrida parte
limitada a todo
o lado esquerdo
como se um raio
lançado por Zeus
tivesse me partido
ao meio

como se um raio invisível
tivesse me dividido
uma metade podre
uma metade sensível

O que fazer
da parte cortada
apartada parte
jogada fora

parte contrária
feminina parte
perdida parte
carne carniça
sanguento pasto
para os urubus

fremente parte
parte partida
que se estorce
cortado rabo
o rabo largado
o rabo tremente
de uma lagartixa
que se debate
no asfalto quente


Ilustração. Desenho sem título de Cavani Rosas, da época dos anos de chumbo

UM ÍCONE DOURADO

por Ormindo Pires Filho

Talis Andrade mais uma vez brinda a Literatura Pernambucana com um livro de poesias. “Cantigas para um Ícone Dourado” é, sem dúvida, uma manifestação das vivências íntimas do autor. Quando examinamos detidamente o tipo de composição que o poeta nos oferece no decorrer do seu pequeno volume constatamos que três temas funda-mentais parecem ocupar de preferência a atenção do autor: o AMOR, a MORTE e a INJUSTIÇA.

Rejeitando conscientemente o lirismo vazio, Talis Andrade consagra seu esforço a estes temas de grande densidade e de inesgotável riqueza.

Analisemos algumas das poesias. Primeiro as que falam do amor. O amor, pelo menos aquele que parece merecer a atenção do poeta, não é algo realizado, satisfatório, completo. Trata-se, antes, de uma possibilidade, de uma hipótese, de uma conjectura. O próprio amor carnal, epidérmico, não parece ter para o poeta uma importância capital e decisiva. Como o amor sentimento ele se apresenta, ou pelo menos nos dá a impressão, de algo inconcluso, inacabado, quase frustrante. Vejamos se os exemplos corroboram as afirmações:

CANTATA DO AMOR À PRIMEIRA VISTA: “Bem-te-vi, descobri:/ era amor antigo,/ pois logo senti/ o gosto de saudade/ de tudo que/ ainda não foi”.

POEMA DO NAVEGAR: “No suave ritmo/ das doces águas/ mar a fora/ noite e dia/ dia e noite/ navegar navegar/ o teu corpo/ cheio de mormaço/ o teu corpo/ cheio de luar/ Navegar navegar/ sobre um macio/ leito de sargaços/ até ancorarmos/ num porto seguro/ Só então descansarei/ velhos sonhos marinheiros./

POEMA DO LOUCO AMOR: “Fazíamos o louco amor/ como condenados à morte/ a que tudo torna permitido/ no suspense voraz/ dos segundos a finarem/ na última rodada/ das longas facas afiadas. Fazíamos o louco amor/ sob a tensão brutal/ do profetizado apocalipse/ à beira do quarto do motel./ Daí porque tantas fogueiras, / daí porque tantos relâmpagos”.

Examinemos, agora, o tema da morte. Tivemos a curiosidade de fazer uma estatística sobre o assunto e causou-nos admiração o número de poemas dedicados ao tema da morte ou que tratam acidentalmente da mesma: dos vinte e oito poemas que compõem o livro quatorze (exatamente a metade) referem-se explicitamente à morte. Seria o nosso poeta um tanatófilo, mesmo inconscientemente? Ou sua predileção pelo tema tem raízes mais profundas, de natureza psicológica ou transpsicológica? Ou seria apenas a utilização de um tema que, por sua própria natureza é prenhe de poeticidade? Que todos nós temos uma inevitável tendência para a morte parece ser um dos dados incontestável da natureza humana. Aos que têm medo de admitir tal realidade, ou se esforçam para esquecê-la e sufocá-la numa avalanche de prazeres ou de atividades, a Igreja Católica aproveita o período pós carnavalesco para dirigir a todos a recomendação solene: memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris, que em tradução livre significa: Lembra-te homem, que és pó, e que te encaminhas irremediavelmente para o pó.

Deixando, pois, de lado, possíveis interpretações de natureza psicológica, existencialistas ou patológicas, todas igualmente viáveis, fixemo-nos numa opinião: a preferência de TALIS ANDRADE pelo tema da morte (que já foi detectada no seu livro anterior) é motivada pela extrema riqueza de que o mesmo se reveste. Vejamos as amostras:

DA RAZÃO DA MORTE NÃO TER DATA: “Não sem razão se vive/ inconsciente da morte/ que se aproxima./ Da imprevisibilidade/ do instante final/ dependem os dias/ escorrerem lenta e tranqüilamente./ Para nenhum lugar se vai/ comendo/ correndo/ engolindo às pressas/ com as mãos no estopim./ Não há porque se consumir/ voando veloz/ para o cego fim”.

Em RONDA DA SEGUNDA-FEIRA encontramos uma atitude hedonista, sibarita, quase cínica, com relação à vida e à morte: “A vida, amiga,/ só se tem uma,/ vamos gozá-la/ desvairadamente./ O que não se pode/ é ficar na cama,/ vestido o pijama/ do barato pano/ da vida comum/ – mortuária medida/ de um quarto/ sem surpresas,/ tal uma tumba/ sem inscrição/ de anônimo soldado/ do ramerrão./ Será que os mortos,/ os pobres mortos/ do frio morgue/ têm inveja/ dos mausoléus solenes/ feitos de mármores/ e belos anjinhos/ apelidados de kitsch ?”

Em EU TIVE UM FILHO o tema da morte assume o aspecto terrorífico-fantástico e nos faz recordar aquele poema de Manuel Bandeira sobre o mesmo assunto: “não tive um filho meu/ mas trago dentro do peito/ meu filho que não nasceu…”: “Eu tive um filho,/ flor estrangulada/ e jogada no esgoto/ de asséptico hospital./ Um filho, irmão/ de tantos outros/ amaldiçoados e renegados/ pelas limpas mãos do medo./ Talvez uma noite/ ele se transforme/ em pássaro cego,/ estrela candente./ Talvez uma noite/ venha chorar/ à minha janela”.

É, porém, em dois poemas de natureza religiosa, que o tema da morte adquiri em TALIS ANDRADE mais profunda densidade. Refiro-me ao poema O SANTO ESQUIFE DE VELUDO VERMELHO e ao POEMA DA CRUCIFICAÇÃO. Vejamos o primeiro:

“O vermelho manto/ do Senhor Morto/ destaca-lhe o branco/ do branco gesso/ (ou vem de su’alma/ esta triste cor?)/ As velhas mulheres,/ num compacto luto,/ trazem mais que o preto/ das grossas vestes./ Exibem as feridas/ das seculares dores:/ as doenças incuráveis,/ os maridos ausentes,/ os filhos desempregados,/ as filhas envelhecendo/ solteiras e estéreis./…O denso clima de morte/ já não comove o morto,/ insondável no caixão/ todo forrado de veludo./ Ele já não escuta/ as antigas lamúrias/ das árvores ressequidas,/ entorpecido que é/ pelo cheiro acre-doce/ de cravos, incenso/ e velas acesas”.

Este poema é, por sua própria natureza, ICONOCLASTA. Não estamos querendo fazer trocadilhos com o título do livro que ora comentamos, mas todo o poema é uma crítica velada à devoção supersticiosa que se dedica às imagens dos santos e que os deixa insensíveis e indiferentes, sufocados, como estão, pelo cheiro de flores, de velas e de incenso.

Já em POEMA DA CRUCIFICAÇÃO encontramos um poema-prece, em que o poeta comovidamente lamenta todo o inútil esforço do Salvador:

“Só agora entendo, Senhor,/ a imensa e eterna solidão,/ de quem está preso/ à árvore da desolação./ Só agora entendo/ o terror dos pregos/ doendo nos teus pés/ de andarilho da liberdade/ o terror dos pregos/ lancinando a carne./ Só agora entendo/ a imensa e eterna humilhação/ da nudez despojada,/ dos espinhos ferindo/ a tua fronte/ que não faz sete dias/ quiseram coroar./ Só agora entendo/ o imenso e eterno desespero/ dos olhos contemplando/ os sonhos que as mãos dilaceradas/ procuraram semear./ Só agora entendo/ a imensa e eterna desilusão/ dos olhos buscando os lugares/ onde a palavra um dia foi ouvida,/ onde tua palavra amiga/ foi consolo dos aflitos./ Ó Senhor, teus olhos infinitos/ percorrem os caminhos/ que teus pés marcaram com sangue./ Os olhos buscam a cidade longe,/ que não faz uma semana/ te recebeu em festa/ -a mesma cidade/ em cujo chão/ até para morrer/ hoje te julgam indigno/ E fora dos muros de tua cidade/ todos te abandonaram,/ indiferentes ao teu coração/ latejante de paixão”.

A contestação social é também tema do livro de TALIS ANDRADE. Há sobretudo três poemas aos quais gostaria de me referir.

AD PETENDAM PLUVIAM: “Frágeis as alianças/ do arco-íris e da Santa Arca/ para quem não tem/ os exércitos de Davi e Salomão./ Todo pacto sempre mantém o mando/ do mais forte sobre o mais fraco,/ o poder dos raios nas mãos de um só,/ o poder da voz de trovão na boca de um só,/ Não adiantam as procissões rogatórias/ nem derramar o sangue dos justos em holocausto./ Quem tem a água, só dará a chuva que lhe sobre./ E tampouco há porque contrariar os santos,/ que deles sempre serão os altares”./

As duas estrofes finais do poema O CRUZADO são claramente contestatórias:

“Não importa como/ o paraíso se chame,/ nem tampouco onde fica./ Carece que te armes/ da mesma fé de um cruzado/ a caminho de Jerusalém./ Não importa que/ a sede rache a boca,/ a fome doa/ no estômago/ a poeira dos desertos/ cegue os olhos/ e feche os ouvidos./ É suficiente que morras/ pensando que descansas/ na Terra Santa”.

Porém é no poema RETRATO DE SIBONEI que a crítica social de TALIS ANDRADE torna-se mais virulenta e contundente:

“Determinaram tudo seria mais fácil/ se em lugar de um nome/ Sibonei tivesse um número./ A prática se mostrou bastante útil/ nos campos de Treblinka e Dachau./ E Sibonei foi marcada/ como o ferro marca o gado./ Um único número serve/ para todos os documentos:/ certidão de nascimento,/ carteira de motorista,/ identidade e CPF,/ PIS, PUTSCH e PUFT./ Um único número economiza papel/ e facilita a burocracia/ E, importante para Sibonei,/ evita as inevitáveis confusões/ das homônimas que existem por aí./ É fácil localizá-la entre/ as demais jovens da boiada./ Nem precisa justificar que não é/ a que tem cobrança em cartório,/ nem a que foi presa/ por falta de decoro/ ou por não estar conforme/ ao que é conforme./ Basta pedir ao computador/ que ele dirá tudo que sabe,/ inclusive os dias férteis/ pela temperatura do sexo./ A polícia tudo sabe/ com um simples apertar/ da tecla do computador./ A polícia tudo sabe,/ basta perguntar pela jovem 04578./ A polícia sabe tanto,/ que a imagem de Sibonei/ refletida no espelho do quarto/ não confere/ com o boneco cadastrado…… A polícia sabe mais de Sibonei/ do que o jovem que a criou,/ como se tivesse segurado/ a mão firme e terna que a desenhou./ A polícia sabe mais de Sibonei/ do que o jovem que tantas vezes/ pelo corpo de Sibonei ao útero retornou”.

Fiquemos por aqui. A amostra apresentada da poesia de TALIS ANDRADE foi suficiente, ao que supomos, para dar uma visão do valor do poeta. Não foi intenção nossa oferecer um resumo completo da obra. Muitos aspectos relevantes foram deixados de lado pelo simples fato de não pretendermos (nem podermos) esgotá-la. Fica, portanto, a sugestão aos leitores: que eles garimpem e encontrarão muitas outras preciosidades que a miopia do crítico não conseguiu descobrir.


In Ensaios e Críticas Literárias. Editora Universitária, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994